quarta-feira, 14 de março de 2012

14 de março: Dia Nacional da Poesia

Comemora-se hoje o Dia Nacional da Poesia, data escolhida em homenagem a Castro Alves, um dos maiores poetas brasileiros. Nascido em 14 de março de 1847, foi patrono da Cadeira n. 7 da Academia Brasileira de Letras, por escolha do fundador Valentim Magalhães, e devoto da causa abolicionista, o que lhe rendeu o título de “poeta dos escravos".

Confira abaixo dois dos poemas mais famosos de Castro Alves: O navio negreiro e Vozes d’África.



O navio negreiro
Tragédia no Mar


’Stamos em pleno mar… Doudo no espaço
Brinca o luar — doirada borboleta —
E as vagas após ele correm… cansam
Como turba de infantes inquieta!

’Stamos em pleno mar…Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro…
O mar em troca acende as ardentias
— Constelações do líquido tesouro…

’Stamos em pleno mar… Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano
Azuis, dourados, plácidos, sublimes…
Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?…

’Stamos em pleno mar…abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares
Como roçam na vaga as andorinhas…

Donde vem?… Onde vai?… Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste Saara os córceis o pó levantam
Galopam, voam, mas não deixam traço

Bem feliz quem ali pode nest’ hora
Sentir deste painel a majestade!…
Embaixo — o mar… em cima — o firmamento…
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meus Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! Ó rudes marinheiros
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! Esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia…
Orquestra — é o mar que ruge pela proa,
E o vento que nas cordas assobia…

Porque foges assim, barco ligeiro?
Porque foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu, que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviatã do espaço!
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas…



Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?…
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! Que a noite é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como um golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
Às vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de languor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor.
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente
— Terra de amor e traição —
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos do Tasso
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou —
(porque a Inglaterra é um navio
que Deus na Mancha ancorou)
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando orgulhoso histórias
De Nelson e de Aboukir.
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir…

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga iônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu…
…Nautas de todas as plagas…!
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu….



Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais, ainda mais…. não pode o olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador
Mas que vejo eu ali… que quadro de armarguras!
Que cena funeral cantar!… Que tétricas figuras!…
Que cena infame e vil!… meu Deus! Que horror!



Era um sonho dantesco… O tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros… estalar de açoite…
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar…

Negras mulheres , suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas, espantadas
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs.

E ri-se a orquestra, irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais…
Se o velho arqueja… se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!

Um de raiva delira, outro enlouquece…
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando, geme e ri

No entanto o capitão manda a manobra
E após, fitando o céu que se desdobra
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“ Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!…”

E ri-se a orquestra irônica, estridente…
E da roda fantástica a serpente
Faz doudas espirais!
Qual num sonho dantesco as sombras voam…
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!…



Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus…
Ó mar! porque não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!…

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós,
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?… Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dize-o tu, severa musa,
Musa libérrima, audaz!

São os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz.
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus…
São os guerreiros ousados,
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão…
Homens simples, fortes, bravos…
Hoje míseros escravos,
Sem ar, sem luz, sem razão…

São mulheres desgraçadas
Como Agar o foi também
Que sedentas, alquebradas
De longe… bem longe vêm…
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’ alma – lágrimas e fel.
Como Agar sofrendo tanto
Que nem o leite do pranto
Têm que dar para Ismael…

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram — crianças lindas,
Viveram — moças gentis…
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus…

… Adeus! ó choça do monte!…
… Adeus! palmeiras da fonte!…
… Adeus! amores… adeus!…

Depois o areal extenso…
Depois, o oceano de pó…
Depois no horizonte imenso
Desertos… desertos só…

E a fome, o cansaço, a sede
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p’ra não mais s’erguer!…
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d’amplidão…

Hoje… o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar…
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar…

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder…
Hoje… Cum’lo de maldade,
Nem são livres p’ra… morrer…
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim roubados à morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoite… Irrisão!…

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus…
Ó mar, porque não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?…
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!…



Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!…
Silêncio!… Musa! chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto…

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do Sol encerra,
E as promessas divinas da esperança…
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!…
… Mas é infâmia demais… Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo…
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

S. Paulo, 18 de Abril de 1868.

Vozes d’África

Deus! ó Deus onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Ha dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde, desde então, corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?…

Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia,
— Infinito: galé!…
Por abutre — me deste o Sol candente,
E a terra de Suez — foi a corrente
Que me ligaste ao pé…

O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino,
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal.

Minhas irmãs são belas, são ditosas…
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos harens do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão.

Por tenda tem os cimos do Himalaia…
O Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais…
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
— Pagodes colossais…

A Europa é sempre Europa, a gloriosa!…
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista — corta o mármor de Carrara;
Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã!…

Sempre a láurea lhe cabe no litígio…
Ora uma c’rôa, ora o barrete frígio
Enflora-lhe a cerviz.
O Universo após ela — doudo amante —
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.

Mas eu, Senhor!… Eu triste abandonada
Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro… bebe o pranto a areia ardente;
Talvez… p’ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão…

E nem tenho uma sombra na floresta…
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador…
Quando subo às pirâmides do Egito,
Embalde aos quatro céus chorando grito:
“Abriga-me, Senhor!…”

Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal, que volve
O siroco feroz…
Quando eu passo no Saara amortalhada…
Ai! dizem: “Lá vai África embuçada
No seu branco Albornoz…”

Nem vêem que o deserto é meu sudário
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja o Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim
Onde branqueja a caravana errante
E o camelo monótono, arquejante
Que desce de Efrain…

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?…
E que é que fiz senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!…

Foi depois do Diluvio… Um viandante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará…
E eu disse ao peregrino fulminado:
“Cão!… serás meu esposo bem amado…
— Serei tua Eloá…”

Deste este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O Anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas
E o nômada faminto corta as plagas
No rápido corcel.

Vi a ciência desertar do Egito…
Vi meu povo seguir — judeu maldito —
Trilho da perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d’Europa — arrebatada —
Amestrado falcão!…

Cristo! embalde morreste sobre um monte…
Teu sangue não lavou da minha fonte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos — alimária do universo,
Eu — pasto universal…

Hoje em meu sangue a América se nutre
— Condor que transforma-se em abutre
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais… irmã traidora
Qual de José os vi irmãos outrora
Venderam seu irmão.

Basta, senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p’ra os crimes meus!…
Há dois mil anos… eu soluço um grito…
Escuta o brado meu lá no infinito
Meu Deus! Senhor, meu Deus!…

S. Paulo, 11 de junho de 1868.

Fonte: Biblioteca de São Paulo.

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